



As Cabaças do São Francisco.
Conto by Severo D’Acelino
O mormaço estava tão forte que os bichos ficavam de bocas e bicos abertos marcando o compasso da espera de uma viração terral, para que o ar rarefeito pudesse melhorar.
As crianças com cabaças nas cabeças retornavam da beira do Rio, um trajeto tortuoso e longe, mais de duas léguas, o Rio que estreitava suas margens, deixando a descoberta vasta extensão do seu leito.
Eram dez horas da manhã e o Sol já castigava como se estivesse a pino, ofuscava a visão queimando os olhos, com ardores insuportáveis a anciã parada a sombra de um arvoredo, tinha as mãos por sobre os olhos, escorrendo o suor do rosto, num maior desconforto. Mas não dizia nada, não se lamentava, agia como se aquilo fosse comum e já estivesse acostumada.
Serenamente Kelebé, a ansiã, cerrava os olhos e com as mãos no semblante, buscava ver o que estava a sua frente, mas era difícil descortinar, pois a fixação em qualquer objeto era impossível, porque a visão ficava embaçada.
- Venha cá ocê minino. Traga essa cabaça aqui.
O menino que despejava a água da cabaça na gamela dos bichos, se voltou sorridente e sem falar nada, foi ao encontro da anciã com a cabaça na mão, despejando água nas mãos estendidas de Kelebé, que jogou no rosto e colocou na boca, fazendo gargarejo e jogando a água fora e logo em seguida, pegou a cabaça e jogou o resto da água sobre o rosto, pescoço e pés.
-Toma fio, vá buscar mais e venha caminhano pelas sombras. Não corra.
O menino a que ela se referia era Baderildo, adolescente e pai de duas crianças, as gêmeas da família nesta geração. Ele andava correndo com guizos nos pés, dizendo que era para espantar as cobras, que não podia matar e não queria ser mordido. Saiu em debandada, de torço nu rodilha na cabeça, se juntou aos demais e em algarzarra foram em direção ao Rio, que distava mais de duas léguas da cabana, onde moravam.
Sá Liô limpava uns peixes que T’inácio salgou e mantinha em conserva no pé de árvore, eram as carapebas que seriam servidas no almoço. Ninguém ali reclamava de nada, nem do calor, sentia e buscava alternativa, algo com que se ocupar, a lida na roça o cuidado com os bichos e tudo mais era normal.
Vez por outra, chegava pescadores e ribeirinhos com algum presente para Sá Liô e Kelebé, iam lá prosar, discutir o tempo, levar crianças para serem rezadas, fazerem algumas perguntas e se inteirarem de tudo mais.
A esteira no meio da sala ampla de paredes tosca, tinha dois agridais com uma mão de farinha, para alimentar o pessoal. O almoço era um pirão de carapeba salgada, que fervia na trempe, cuja fumaça anunciava a condição do tempo, ar parado e um calor terrível. Era mais de três horas da tarde, o pessoal que se ocupara nos trabalhos da roça e no carregamento de água para os bichos e abastecimento da casa, homens, mulheres e crianças, esperavam pelo parco almoço.
Na cozinha Kelebé aplicava a sua mágica da multiplicação. O agridal com duas mãos de farinha para alimentar doze bocas esfomeadas, aguardava já com os temperos que eram constituídos de dendê e cheiro verde. Franzindo a testa, preocupada com a quantidade de farinha, que dava para pouco mais de três bocas, chamou Baderildo e mandou que despejasse o caldo do peixe no agridal enquanto ela iria mexendo o pirão, e batendo para não embolar numa rapidez transpirante para o caldo não esfriar.
O pirão cresceu e encheu o agridal que foi colocado no centro da esteira ao lado do outro agridal com os peixes, ali todos foram servidos e comeram sentados na beirada da esteira.
Um dia de estiagem onde até os bichos sentia a falta de ar e sofriam nas sombras com o calor, Kelebé fez um pirão de carapeba para seu pessoal.
Sá Liô com o cachimbo na boca cujos dentes pareciam de um adolescente, sem nenhuma marca de seu hábito, sentada junto a Kelebé falava da necessidade de voltar para o antigo pouso que deixara na época da enchente do Rio, pois a distância do atual era muito grande para manter os bichos e a casa com água e com esta estiagem estava na hora de retornar, no que Kelebé concordou e chamou T’Inácio para voltar no antigo pouso com o pessoal e preparar o local que iriam voltar. Mandou levar umas manaibas para preparar com um pedaço de jabá para comerem.
T’inácio chamou Baderildo deu as ordens e imediatamente com as crianças e duas mulheres, se dirigiram para o antigo pouso, a margem do Rio.
Já apontava o por do Sol e o céu continuava límpido, sem nuvens, o ar parado assinalava que a estiagem seria demorada, mas até agora nenhum bicho foi perdido.
Sá Liô mandou colocar uma esteira do lado de fora da casa e pegou seu xale e a guisa de travesseiro, deitou de lado, enquanto as crianças se movimentavam em torno dela, malinando e de olhos para o céu, buscavam contar estrelas que não surgiam.
Noite sem estrelas, noite quente, noite de silenciosa magia de contos e mulheres que se revelavam nas lembranças dos gemidos e gritos sufocados ao rugir dos ventos parados. Lembranças adormecidas, despertadas pelos ecos das traquinagens das crianças ávidas por ouvir o sussurro das tias, contando seus contos de ninar gente grande num diálogo monologico, onde ouvia suas próprias vozes, conversando consigo mesma.
Sá Liô arrumou o xale no pescoço e falou para Kelebé, como para si mesma – Kelebé não tem muito tempo que Aramefá despertou o temporal na beira do Rio...foi um tempo bom aquele...hoje estou pensando em buscar as cabaças para umas viagens de peditórios.
Kelebé ouvia e calada estava, calada ficou, arrastando umas sandálias se dirigiu para perto de uma touceira, se ajeitou e sem se acocorar fez suas necessidades e ali mesmo ficou cismando, se era ainda possível e se era importante mexer com as forças do tempo, já naquela idade e se iria agüentar o barrufo sem ninguém por perto para lhes ajudarem.
Regressou e encontrou Sá Liô falando para as crianças que dormiam espalhadas na esteira, revisitava os ancestrais e contava como era possível fazer o barco passar despercebido do Negro d’Agua e não encalhar nos bancos de areias. Como era triste o silencio do Rio, onde deixavam escapar os gritos dos afogados, quantas lamúrias! Era de cortar coração, muitos pedidos de rezas, socorros e favores e só as cabaças poderiam levar algum atento as almas perdidas.
Kelebé parou em frente a Sá Liô e rodou agitando os braços para cima e para os lados coçava o corpo todo e como se estivesse tomando banho, bateu nas palmas dos pés de Sá Liô que se calou e de repente levantou saindo em direção contrária de Kelebé andando em circulo sobre a casa, falando coisa inteligível e se comportando como não se conhecessem.
Os movimentos que faziam começarão a tremular o chão e uma aragem começou a se fazer, os bichos começaram a se agitar e as crianças dormindo, não sentiam nada. A cachorra começou a latir o vento se fez presente como um redemoinho trazendo gritos soltos no ar.
Como fogo corredor, varando a noite clara, as duas mulheres, rodopiavam em torno da casa em direção contrária provocando um vendaval
A viração ali, naquele lugar, aconteceu e choveu como nunca ali tivesse chovido uma chuva fina, chuva de orvalho.
Serenou e neste clima de tempo em suspensão, o dia raiou com intensidade e as duas ainda rodopiavam entre si até pararem estática uma frente a outra como um imã. E foi assim que T’inácio encontrou as duas, no seu regresso do antigo pouso.
As gêmeas que eram criadas por T”Inácio, já estavam nos seus pés, pedindo braços, elas não aceitavam o colo de ninguém a não ser de T’inácio, eram as que mais regalias tinha no lugar.
Como se nada tivesse acontecido, a vida continuou, sem mais o calorão do dia anterior. Sá Liô foi fazer o café, manaiba com jabá, e todos comeram e foram para seus serviços na roça e na mudança do pouso, logo que saíram para a lida, Sá Liô recebeu umas visitas e uns presentes. Eram ribeirinhos que vinham em busca de acalanto para a suas crianças que estavam doentes e apelavam para Sá Liô, cuja fama era reconhecida. As gêmeas se aproximarão e buscaram os colos das meninas que imediatamente as pegaram e se sentaram para brincar enquanto suas mães conversavam com as anciãs.
T’inácio que por perto não tirava os olhos das gêmeas, ficou surpreso e enciumado pelo que estava vendo. As gêmeas abraçadas com as meninas, se enroscando como cobras em seus corpos, e as mulheres nada percebiam, em dado momento as gêmeas se desgrudaram e começaram a chorar no que foram recolhidas pelo T’Inácio que rispidamente tirou uns visgos que as gêmeas seguravam.
Sá Liô puxou língua com T’inácio e parecia zangada. Kelebé pegou as gêmeas e soprou nos ouvidos e colocou as no chão com um tapinha nas nádegas, ambas saíram correndo a brincar sobre os olhares sisudos de T’Inácio. Tudo isso aconteceu sem que as visitas percebessem. Sá Liô chamou as meninas, conversou com elas, deu um abraço e mandou ir brincar no terreiro.
Enquanto as crianças brincavam, correndo atrás das galinhas e cabritas, chegava mais gente, com presentes, sempre aves e animais de pequeno porte, era assim que a casa era cheia de bichos, vez por outra traziam peixes e arroz, pois era costume já tradicionado estes mimos as idosas que cuidava de todos que as procuravam, com suas rezas e seus passos e muitas conversas.
O certo era que as visitas se sucediam, devido o movimento do pessoal no antigo pouso, pois as crianças brincando na beira do Rio, passaram a informação e daí para o cortejo até a casa das tias foi um passo e T’Inácio aproveitou a presença de diversos pescadores, para junto com seu pessoal, levar a mudança para o caramanchão do antigo pouso, e, como numa rumaria, seguiram enfileirados com trouxas e moveis toscos nos lombos dos animais.
As anciãs ficaram com as gêmeas e as meninas que vieram para serem rezadas. Kelebé falou para que as mães das crianças deixarem elas dormirem aquela noite ali que no dia seguinte já podiam vir buscar.
O ar de cumplicidade que as anciãs trocaram não foi percebido pelas mulheres, que se despediram e seguiram para seus pousos e Sá Liô se recolheu ali mesmo, sentada e de vez em quando agitava o corpo, respondendo perguntas que não foram feitas. Kelebé foi para cozinha fazer o café do pessoal e alimentar as crianças que entretidas com suas brincadeiras, não percebiam o que se passava entre as duas anciães que travavam um longo e complicado diálogo imperceptivel.
Só T’inácio voltou àquela noite e foi encarregado de providenciar as cabaças na madrugada, para o peditório no Rio onde o ritu seria completado pelas quatros crianças, antes do Sol se por. Foram tratar dos preparativos, abrindo uma clareira no mato e desenterrando raízes que eram trituradas pelas meninas completamente em transe e socadas por T’inácio que separava em cima de folhas. Assim ficaram até que o ancião se embrenhasse mato adentro em busca das cabaças e, antes do raia do Sol, tudo já se preparava e era recolhida no centro da casa na esteira.
Amanheceu com os cantos dos bichos e relinchar dos animais. As crianças dormiam exaustas do prolongado transe, as gêmeas com pouco mais de dois anos e as crianças uma com cinco e outra com sete anos, todas as crianças eram do mesmo mês, nascidas no mesmo dia com as mesmas formas de proteger em suas entidades diferentes, ligadas no quadrante dos elementos cosmológicos da magia dos Vodus das anciãs que se atreveram usá-las colocando em perigo as suas sanidades.
O carrego era forte e T’inácio sabia das conseqüências tão bem quanto as anciãs que frente a frente, velavam pelo ebó, ali na sala impedindo de qualquer aproximação ali no pouso. As crianças e os demais já estavam alojados no antigo pouso, e só com a chegada das anciãs, retornariam para levar os bichos, animais, e, o restante das coisas.
Passou a manhã sem qualquer novidade, sem qualquer alteração, o Tempo e o Rio continuavam no mesmo, lá para quatro horas houve uma forte trovoada e o vento virou, as águas do Rio encapelaram, muitos barcos buscavam as margens para se abrigarem e, de repente a calmaria, o Sol se inclinava, era uma chuva de viúva, diziam alguns.
As crianças acordaram e segurando as pontas da esteira que continham o EBÒ das cabaças, se dirigiram para o Rio, acompanhando T’inácio que seguia na frente, Sá Liô em seguida e atrás Kelebé. A esteira parecia levitar como levitavam as meninas, as gêmeas na frente iam seguindo um ritu pré estabelecido pela anciã e era seguida pelas outras.
Assim que chegou à margem do Rio, começou a chover e a ventar, o céu escureceu e ali paradas as anciãs e as meninas esperavam que T’inácio acendesse todas as tochas das cabaças que eram imediatamente depositadas nas águas do Rio pelas meninas, até a última e só assim elas seguiram como uma piracema, contra a correnteza até atravessar o leito do Rio, para em seguida, seguir a correnteza.
Ali na margem do Rio, pós uma torrente de Relâmpagos e troar de Trovões passavam em cortejo as Cabaças, emitindo uma luz azul e amarela nítida em direção das Almas dos Afogados, os Eguns que se libertavam pelas mãos do destino de Nanã.
A margem do Rio, diversos ribeirinhos como que chamados a presenciar a passagens dos Afogados, viam na noite escura as estrelas singrando as águas do Rio , rumo ao Mar e o Céu iluminado de estrelas numa visão fantástica, jamais vista.
“Enquanto se deleitavam com a visão, as crianças e as anciãs se recolhiam, ficando T’inácio mirando Aramefá no outro lado do Rio sobre chuvas de estrelas candentes.” '
Ariô cantou.
Ariô cantou Ajarê”
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