
DNÁfrica – A poesia de Severo D’Acelino em
“Visões do Olhar em Transe”
No início, ele me disse, foram mais de mil poemas passados
para o computador. Pensei: e ele quer que eu escreva sobre esses
mais de mil poemas... Inevitavelmente eu teria que varar noites e
madrugadas de leitura em péssimas condições de cansaço físico e
mental. Um trabalho que não estava agendado, portanto sem horário
disponível, a não ser depois de tudo de cada dia. O tempo dado
para a entrega dos meus comentários analíticos para o livro “Visões
do Olhar em Transe” – poemas transculturais afro-sergipanos – de
Severo D’Acelino não fora regulamentado. Ele falou: Não se preocupe,
leia isso no tempo que puder, mas eu preciso do seu texto neste
livro. Impossível recusar. Até porque a conversa pelo telefone não
dava margens a explicações do que é o meu Tempo, isso que não
sobra hora alguma. Sou (estou) programada nos três turnos, com
disciplina alimentar e respeito ao sono.
O calhamaço dos originais enviados por Severo D’Acelino,
contendo 526 páginas, ficou ali na mesa de cabeceira me olhando e
eu desviando a vista, por uma semana. Enfim, li a primeira página:
o trabalho marca os 40 anos da Casa de Cultura Afro-sergipana, entidade
fundada por Severo, que também comemora seus 60 anos de
vida. Aí parei. A coisa era mais séria do que eu supunha.
Acompanho a trajetória desse sergipano e sua luta étnica pela
cultura negra desde sempre; estive presente na formalização da Casa
de Cultura Afro-sergipana, em outubro de 1968 – anos depois chamada,
como jornalista e aliada cultural, a registrar o descaso de alguns
governos para com a entidade, seu autor e seu reduto. Dores
flambadas no azeite da luta pela memória e tradições da Cultura Negra.
Dores fermentadas e urdidas em gritos que se foram tornando
poesia ao longo do caminho.
Quando alguns amigos alçaram condições de poder, como o
jornalista Luiz Antônio Barreto à frente da Secretaria Estadual de
Educação, Severo mostrou serviço na área pública, palestrando e
dando aulas em escolas da capital e do interior, levando um exemplo
de cidadania e valores culturais em sua própria maneira de ser, andar,
falar, vestir-se, recitar, atuar, criar, poetisar...
Severo é um titã negro vendo o voraz processo de transformação
social engolir valores fundamentais ao pensamento e identidade
cultural de sua orgulhosa raça. Não um velho arquejante sob o
peso da memória de África, mas um minotauro mimético, herético
e revigorado pela consciência histórica da sua luta. Seus gládios: a
caneta, o giz, o papel, o palco, a tela de cinema e TV, o computador,
ferramentas de ampliação da sua voz, idéias e ideais. Do bem, notoriamente, um aguerrido guerreiro.
E assim fomos vendo Severo D’Acelino fazendo e acontecendo,
construindo a identidade afro-descendente de feição sergipana,
resgatando a memória dos ancestrais e seus rastros culturais, religiosos,
comportamentais e suas histórias; formatando um novo horizonte
para os negros na perspectiva de sergipanidade, em condições de
igualdade escolar, universitária e profissional. Utopia? Que poeta não
seria? Escreveu e publicou livros. Ganhou fama e reconhecimento.
Ganhou o respeito e a amizade de intelectuais e artistas. Hoje configura
os 12 pares do Conselho Estadual de Cultura, membro assíduo e
pertinente como base popular. Aos 60 anos, nada mais justo que uma
cadeira no Conselho de Cultura, para sua contribuição memorável.
Até aí, tudo nos conforme cármicos de causa e efeito. Até
que me chega aos olhos “Visões do Olhar em Transe” e cresce em
proporções gigantescas a minha admiração pelo autor de tão intensa
e diamantina poesia.
Água suspensa no mar desértico, não posso dizer da surpresa
que foi constatar a evolução poética de Severo D’Acelino. Do seu
último título lançado, Pan’África, a este embrião de livro concebido
em transe, como se numa viagem intergaláctica transportouse
a alma do poeta para o âmago do seu DNÁfrica, agregando conhecimentos
da filosofia “branca” e da mitologia grega, mesclando
numa memória primitiva todas as raças para crescer e se projetar, ele
mesmo, como metamorfose ambulante, pensante e um senhor poeta,
consumado em “Visões do Olhar em Transe”.
Excelente, é pouco, o livro está lindo; lindíssimo trabalho de
alma que Severo D’Acelino oferece com generosidade às mentes
cultas e aos espíritos quebrados pelas dores e preconceitos que se
encontram em toda parte, também no âmbito transcultural. Poesia de
identidade negra, sergipana de raça. Mais que um resgate étnico, um
deleite para os seres poéticos de todas as raças e tribos.
Eu, portuguesa-espanhola-holandesa e tupinambá sou da tribo
de Severo, ainda que não tenha DNÁfrica na genética poética,
mas a alma que anima o vôo do pensamento nas asas do sentimento
e da emoção. Com muita razão recomendo a publicação deste livro
para que um maior número de leitores possa sentir e conferir o salto
quântico de Severo em “Visões do Olhar em Transe”.
Ilma Fontes
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