segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

JOÃO HÉLIO DE ALMEIDA




VISÃO SOBRE AS VISÕES
João Hélio de Almeida*

Visões do Olhar em Transe, de Severo D’Acelino, é um trabalho
poético que consta de 450 poemas, onde os mais diversos
temas são abordados: autobiografia, negro, racismo, a natureza, rio
São Francisco, mitologia, religiões, filosofia, amor, política, justiça
etc.
Sinto-me habilitado para comentar esse livro pelo conhecimento
que tenho das atividades do autor. Trabalhei com Severo de
dezembro de 2003 a janeiro de 2005 na Casa de Cultura Afro Sergipana
(CCAS). Durante o convívio profissional com esse ilustre
representante da intelectualidade sergipana, aprendi muito sobre o
legado, cultura, religiosidade, história, sociologia, antropologia e
geografia do negro em Sergipe.

Participei no Projeto Educacional “João Mulungu vai às Escolas”.
Projeto ligado às manifestações das tradições históricas das
localidades sergipanas, tendo como eixo os indicadores culturais,
enfatizando as etnias que mais contribuíram para esses indicadores
e que se apresentam com mais visibilidade no conjunto da população.
O projeto teve como tema central a influência do negro e do
índio na cultura sergipana, buscando oferecer vínculo com a cultura
e arquivo humano local, como estratégia pedagógica para tratar da
exclusão desses elementos étnicos.

Confeccionamos alguns cadernos pedagógicos e outros deixamos
no prelo. Esse material fora desenvolvido de acordo com a
pedagogia da educação inclusiva – algo já trabalhado pela CCAS
antes mesmo de se tornar modismo disfarçado em “palavra de ordem”
nos parâmetros da Educação Nacional.

Praticamente um ano e meio após encerrarmos nossas atividades,
tive o privilégio de receber desse “preto de Zambi” o convite
para elaborar este artigo. O título do seu trabalho me chamou a atenção
sobre que olhar e que transe seriam esses.

Enquanto Severo comentava a respeito de sua proposta nesse
livro, lembrei de um ditado popular que diz: “os olhos são o espelho
da alma”. Suspeitei que “os olhares em transe” fossem um transe da
alma ou as visões de uma alma em transe.

Seria esse transe como o dos profetas, como o êxtase do santos,
como o de Mohammad ouvindo o anjo Gabriel, como o das
Iyalorixás? Como aquele do filme “Terra em Transe” de Glauber
Rocha – de um povo oprimido sob a tirania da corrupção moral e política?
– ou ainda, um transe em que todos pudéssemos estar vivendo
inconscientemente?

Vislumbrei cada uma das 450 visões de Severo expressas
nesse livro. No começo, me veio à mente um filme do cineasta
espanhol Luís Buñuel, que começou com a célebre cena de um
lindo olho feminino sendo rasgado por uma navalha. Ele queria,
a meu ver, abrir abruptamente os olhos do povo para uma nova
realidade. Essa mesma cena foi reutilizada por Salvador Dali em
Un perro andaluz, filme deveras surreal. Será que Dali estaria
mostrando o surrealismo àquele olho rasgado? Penso que Severo
pretende o mesmo que Buñuel e Dali: “rasgar com navalha” nossos
olhos, para que vejamos aquilo que está oculto à nossa visão
objetiva.

Quando fui à CCAS receber a cópia dos poemas, notei que
havia na fachada um “banner” com o Olho de Hórus. Não um olhar
qualquer, mas o do Onipresente, Onisciente e Onipotente Hórus.
Deus negro do mundo dos vivos no antigo Egito faraônico. Sobreveio-
me a recordação de uma estátua de bronze da divindade negra,
da época saíta, atualmente exposta no Museu do Louvre em Paris.

Nela, ele aparece em forma antropozoomórfica, com cabeça de falcão,
as duas mãos estendidas, quase juntas, entre reto e côncavo,
diante do peito, apontando para frente. Parece que o artista esculpiu
o Deus-Falcão como querendo dizer alguma coisa, mostrar algo. E
eu fitei a imagem, interroguei, sem perceber quase adorando. Hórus
parecia dizer: “retidão”, “siga”, “olhe”, “receba”. A voz de Hórus
ecoou confusa na minha mente.

Seu olho no “banner” da CCAS ou no centro da pirâmide
iluminista “tudo vê”. Ilumina as trevas da ignorância. Existe uma
semelhança entre o Olho de Hórus e as Visões do Olhar em Transe:
iluminar e dissipar a ignorância!
Ressalto os olhos protuberantes das belíssimas cabeças de
bronze nigerianas. Olhares sofridos, revoltados com o imperialismo
europeu que com mão de ferro transformou o Continente numa colcha
de retalhos etnocida.

Acima de tudo, os olhos transmitem poder. O simbolismo do
olhar está presente em todos os cantos do mundo, da África ao Japão.
Orixás quase sempre dançam de olhos fechados. Dificilmente
vemos uma representação iconográfica dos Deuses Africanos mostrando
os olhos.

Olhos transmitem poder, tanto para o bem quanto para o mal.
O monge japonês Mikao Usui, desenvolveu uma terapia holística
de cura chamada Reiki, onde são utilizados os “chacras” das
mãos e os olhos para transmitir a poderosa energia de amor universal
que tem o poder da cura.

Já no imaginário popular, que convencionalmente chamamos
de superstição, existe o “olho grosso”, “olho grande”, “olho gordo”,
“olho ruim”, “olhado”, “olho de seca-pimenteira”, que matam animais
recém-nascidos, que adoecem crianças, que “atrasam” a vida
de qualquer um que não estiver devidamente protegido.

O autor afirma que compôs olhares tristes, inquietantes, denunciadores,
ácidos e dramáticos. Impregnados de linguagem simples
e repetitiva. Versos vivos de ilusão duradoura, cheios de símbolos
sem malabarismos, falando sobre o amor e a dor que há nele,
como ícone de esperança.

Além do que os literatos chamam de eu-lírico, notei em Severo
o “eu-espiritual”. As Visões são orações, são rezas de todos os
credos, rezas de benzedeira, são oriki, são músicas cantadas com o
espírito, são prosas de fim de tarde em boteco do interior, são ebós
despachados em encruzilhada, são batuques para os Deuses. Também
muitas vezes são versos secos. Alguns de seus poemas fazem a
gente sentir sede.

Seu trabalho muitas vezes diz o que não se quer ouvir, o que se
tem medo de encarar. É verdadeiro, e por conseqüência, incômodo.
Incomoda pela quantidade de palavras em Ioruba, idioma de
nossos tataravôs africanos. Talvez a única palavra que não caia no
ridículo frente aos imbecis seja “axé”, por ter sido branqueada pela
mídia, que acha ter descoberto o “exotismo” negro e ter vilipendiado
em música alheia ao significado mesmo da palavra.

As demais palavras do Ioruba são alvo de gracejo pelos alienados,
que ao contrário, se admiram com arremedo de meia-palavra
na língua do império que nos subjuga: o inglês. Não é de se estranhar,
há quem goste de ser dominado. Analogamente, durante o
Império Romano, povos conquistados, que tiveram suas plantações,
casas, mulheres e filhas violadas e saqueadas, procuraram a todo
custo obter a cidadania romana.
A subserviência cultural, baixa auto-estima e complexo de inferioridade são sentimentos conservados desde longa data. Questiono se esses alienados – que prestam vassalagem a tudo que é “vomitado” pela grande mídia e a tudo que é empurrado “cérebro adentro” pelo Tio Sam – também não estariam vivendo um transe.

Severo traz um poema-provérbio adequado para esses alienados:

“quem são arrogantes / com os pequenos / são subservientes
/ com os grandes”. Se observarmos bem, todos que são vassalos de
poderosos são arrogantes com os “pequenos”. Covardes. E é bom
lembrar o ditado: “nos capachos é onde se pisa primeiro”!

As Visões também são vozes. Vozes em kibundo, kicongo,
ioruba. São gritos, mostrando que na África, a entonação da voz às
vezes é tão importante quanto seu significado literal. Gritos históricos,
por ser inolvidável no Sergipe silenciado e amordaçado pela
elite nobiliárquica.

Um ponto interessante é quando Severo d’Oxóssi cita Candice
Colle: “A verdade muda de cor conforme a luz da manhã, podendo
ser mais clara que ontem. A Lembrança é uma seleção de
imagens, algumas ilusórias, outras indeléveis na mente. Cada imagem
como um fio. Cada fio, tecido junto para fazer uma tapeçaria
de textura intrincada. E a tapeçaria conta uma história, e a história,
é o passado”.

Se for correto que a verdade muda de cor conforme a luz da
manhã, talvez seja ela dinâmica, abstrata e relativa. Analogamente,
como ao passar da estação fria para estação quente as manhãs se
tornam mais claras, assim o seja com a verdade. Nesse ponto, acredito
que ainda estamos vivendo um grande inverno e o sol matutino
ainda é uma esperança. Severo demonstra em seus versos a espera
por esse sol.

Quando Colle comenta que “a lembrança é uma seleção de
imagens”, reafirma o que os psicólogos comentam sobre o caráter
seletivo da memória. Selecionamos inconscientemente o que mais
nos interessa, o que nos marca. Sendo assim, o que marca a memória
de um Oni Odé Olubojutô do Ilê Axé Opô Airá, de Mãe Eliza? Quais
as suas lembranças, suas nostalgias, seu banzo ancestral? O que ele
escreveria num livro de poemas? O que ele vê quando olha o litoral
e tenta ouvir a África do outro lado, a terra da Aruanda?

Ainda de acordo com Colle, essas recordações são como fios
tecidos juntos “para fazer uma tapeçaria de textura intrincada. E a
tapeçaria conta uma história, e a história, é o passado”. Concordo
com a afirmação de a história ser um todo intrincado de fios resgatados
do lago de Mnemosine. História e memória relacionam-se
intimamente. Quando nos referimos aos afro-brasileiros, essa idéia
reforça-se ainda mais pelo fato de a tradição oral ser parte fundamental
de seu legado. Suas tradições, costumes, lendas, vivências,
mitos, falares, culinárias são transmitidos pela oralidade, que é por
si, uma expressão da memória.

É de conformidade com minha formação de historiador que
realizo tal reflexão. Em meu trabalho de conclusão de curso preocupei-
me em reconstituir as idéias, a visão e a ação da violência
atrelada ao senso de honra em Carira, lugarejo do interior sergipano,
representando uma espécie de herança não material que figurou (ou
ainda figura) naquela cidade. Teci alguns fios, tentei montar uma
tapeçaria, como diria Colle. Acredito que em “visões do olhar em
transe”, Severo tece fios de sua memória, de sua vivência, de seu
cotidiano, de sua ancestralidade, da territorialidade sergipana, das
politiquices que destroem o conceito literal de democracia, de moral,
de república.

Dentro dessas considerações sobre o excerto de Colle atrelado
ao trabalho de Severo, creio que seja interessante abrir aqui
um parêntese para comentar um pouco mais sobre meu trabalho
monográfico.

Nele utilizei a metodologia do Paradigma Indiciário de Carlo
Ginzburg, pelo sentido de decifração de enigma, agindo numa atitude
dedutiva, movida pela suspeita de um acontecimento singular, à
margem dos acontecimentos históricos.

Estudei o assassinato de um certo Brazilino Dionizio de Menezes,
suplente de subdelegado de polícia em Carira. Esse crime foi citado
apenas nos dois trabalhos do memorialista Olímpio Rabêlo, mas
sem a grande ênfase dada pela memória popular carirense. Nesse ponto,
me vali do Paradigma Indiciário. Segundo a historiadora Sandra
Jatahy Pesavento, esse paradigma consiste em: “Ir além daquilo que
é dito, ver além daquilo que é mostrado (...) exercitar o seu olhar para
os traços secundários, para os detalhes, para os elementos que, sob um
olhar menos arguto e perspicaz, passariam desapercebidos”.
Dentro dessa perspectiva, procurei entender por que mataram o citado suplente de subdelegado, buscando a constância dos detalhes, agindo de
modo detetivesco, analisando cada elemento em relação ao conjunto.
O método acima descrito pode ser chamado de “método da
grelha” ou “grade de cruzamento”. Nesse método, os cacos da História
– a dispersão dos documentos – tomados na sua rede de correspondência,
apresentam-se como sintomas de uma época.

Então, esse método consiste em selecionar, cruzar, combinar, compor, montar, mostrar detalhes, destacar o que está em segundo plano.
Fechado o parêntese, e tentando relacionar a observação
quanto à minha monografia ao trabalho de Severo, retomo o excerto
de Colle, “Cada fio, tecido junto para fazer uma tapeçaria de textura
intrincada. E a tapeçaria conta uma história (...)”. Tecer fios
de uma tapeçaria, e essa tapeçaria conta uma História. Ora, isso é
basicamente, o “método da grelha”, da “grade de cruzamento”. É o
Paradigma Indiciário.

Carlo Ginzburg no artigo Sinais, Raízes de um Paradigma Indiciário,
diz que poderíamos comparar os fios que compõem uma
pesquisa realizada com o método ora descrito aos fios de um tapete.
Chegados a este ponto, vemo-los comporem-se numa trama densa
e homogênea. A coerência do desenho é verificável percorrendo o
tapete com os olhos em várias direções.
O resgate da memória dos esquecidos, a “tecitura dos fios”
de Colle, representa a analogia que estabeleço entre meu TCC e as
Visões do olhar em transe. Assim como busquei um nome praticamente
apagado da história carirense, Severo resgata o grito de um
povo sofrido, de um rio quase-morto – o São Francisco – de uma
natureza, Gaia, Nanã, que morrem aos poucos, vitimadas pelo capitalismo
consumista, pela politiquice assassina.

Em Visões do olhar em transe, Severo vai além daquilo que é
dito, vê além daquilo que é mostrado, tal qual os historiadores que
utilizam o Paradigma Indiciário. Quando o autor escreve sobre o
negro, a natureza, o rio São Francisco, está, como diria Pesavento,
exercitando o olhar para os traços secundários, para os detalhes, para
os elementos que, sob um olhar menos arguto e perspicaz, passariam
desapercebidos.

Não percebi, em nenhum momento, demonstração de medo
ou cautela desnecessária nas expressões dos olhares de Severo. Ele
critica com honestidade. Não elabora crítica odiosa, rancorosa, ao
contrário, empreende uma verdadeira elocução de sua vivência.
Quantas vezes várias pessoas, sedentas de justiça, não quiseram lançar
um manifesto como esse e não tiveram coragem, para manter a
“política da boa vizinhança”. Severo demonstra não precisar disso.
Ele mesmo me confidenciou certa vez – e eu acredito nisso – que
“vive para a causa negra e não da causa negra”.

Severo é o arquétipo máximo de identidade da negritude sergipana.
Em Visões 242 ele diz: “assumindo a identidade ancestral
/ luto contra os dominadores”. Acredito que de vez em quando alguém
diz timidamente: “concordo com você, mas não tenho coragem
de assumir”. Deveria dizer mais francamente: “sou impotente,
covarde, subserviente”.

Quantos não pensam a mesma coisa que ele e sentem medo
de desabafar! Temor de seus padrinhos, dos mandarins que Núbia
Marques tanto acusava. Sergipe ainda é uma província – digo isso
no sentido do atraso de seus costumes políticos e da maioria das
instituições.

Observo uma sintonia das Visões com o novo olhar da História,
a Micro-história italiana, perceptível quando ele comenta da
busca no memorial dos ancestrais: “Meus são os momentos que viverei
/ não os que já vivi / busco no memorial do tempo / o tempo
dos meus avós / cujo sangue corre em / minhas veias abertas para /
visão de sonhos pensados / como uma casa sobre a ponte / por sobre
o abismo que deixou / refletir a luz nas encostas”. Severo fala de
uma herança, de uma herança imaterial, como bem afirma o microhistoriador Giovanni Levi em A Herança Imaterial.

Suas visões são como jangadeiros que passeiam pelo São
Francisco, morada de Oxum Apará, Opará dos índios, Velho Chico,
rio da integração nacional, assassinado dia-a-dia pela voragem destruidora
de uma política malfadada em interesses outros que não ao
que realmente deveria se propor.

Esse passeio poético pelo Opará não é como as excursões turísticas.
É um cortejo fúnebre sob canto de incelença, que olha para
o passado e lê as crônicas dos navegantes portugueses que diziam
no século XVI, que dezesseis quilômetros depois da foz ainda se
pegava água doce. Em Visões 84 o autor declama: “o rio grita encurralado,
represado / e o mar, invade para chegar / ao olho d’água
e desviar o rio”. Além do mar que avança rio acima, literalmente,
aqui podemos fazer uma analogia com a corrupção que avança pelas
entranhas da política, que tenta chegar ao olho d’água da moral e dos
bons costumes para depois desviar seu curso.

Visões, também são as visões do próprio olho d’água, que
tristemente espera sua morte, tal qual réu que aguarda sua sentença
de morte. “O passado é um país estrangeiro. Lá eles fazem as coisas
de maneira diferente”, assim começa o romance O mensageiro de
L. P. Hartley. É interessante essa citação para contrastar com o que
fazem hoje com o nosso Velho Chico. No passado era utilizado com
respeito, hoje é aviltado, humilhado.

Quisera novamente que Odé Erinlé, que na África Ocidental
transformou-se num rio, se transformasse novamente aqui no Nordeste,
para ser tributário do São Francisco e ajudá-lo nessa longa
jornada cheia de bancos de areia até a foz. Quisera que Ísis que com
seu choro pela morte do marido-irmão Osíris, viesse chorar um pouco
aqui no sertão para encher o São Francisco.

Seus poemas ecológicos não devem ser rotulados como ecologia
hipócrita de falar de verde o tempo todo, sem promover ações.
Ele denuncia o anti-ecologismo governamental do consumismo capitalista
desenfreado que num pensamento imediatista não mede as
conseqüências do amanhã.
Severo não pára de cantar a agonia dos rios. Como nas casas
de Angola, reverencia o ancestral da terra, o caboclo. O São Francisco
é o pai Chico, caboclo d’água morto pela poluição. Lembra os
versos de Vital Farias na música “Saga da Amazônia”, quando ele
diz que as caiporas não vigiam mais a Floresta Amazônica.

O São Francisco pode um dia chegar a parecer com o rio seco
por onde caminha a família do retirante Fabiano em Vidas Secas
de Graciliano Ramos. Pelo gosto dos assassinos do Brasil, talvez
um dia ele esteja assim, e esses mesmos hipócritas farão campanhas
para ressuscitar o rio! Tal como os EUA fizeram no Afeganistão:
jogaram bombas, para depois jogar farinha. Como diz o ditado: “o
cachorro se parece com o dono”.

Severo denuncia o racismo. Esse racismo que cresceu após a
Lei Áurea. Crime praticado, porém negado.
É contra a polêmica política de cotas para o negro nas universidades.
Acredita ele que essa política existe para legitimar o racismo
estatal que classifica o negro como inferior ao branco. Uma chance
para os inferiores, na ideologia da Política Nacional. O decreto de
impotência do Estado, ante a problemática da educação no país.
O autor percebe o racismo onde ele mais se esconde e se escamoteia.
Percebe-o na mídia televisiva. Telenovelas com as empregadas
domésticas sendo quase todas negras, quase todas promíscuas,
“da cor do pecado”.

No Visões é usado constantemente o trocadilho da expressão
“nego” por “negro”. Não “nego” com som de “nêgo”, mas de “négo”
mesmo, do verbo negar. Negro que nega, racialidade invertida, branqueado
a pulso. Negro que não é preto e preto que quer ser branco.
Em visões 226 lemos a seguinte lição de identidade racial: “O mais
importante não é ser negro / mas reconhecer-se negro”.

A expressão afro-descendência é condenada o tempo todo.
Para o autor, afro-descendência é como se dissesse, “sou descendente
de africano, porém não sou africano, não tenho culpa de ser
descendente”. Um “sou, mas não sou”! O correto seria, segundo o
Visões, afro-brasileiro, afro-sergipano, que quer dizer africano de
Sergipe, africano do Brasil.

Ele critica os negros quilombolas. Negros que só se afirmam
para conseguirem as “benesses” dos poderosos, negros por conveniência,
não por questão de identidade. Esses sim são afro-descendentes.
Quilombolas de “araque”.
Por outro lado cita o advogado e pastor Martim Luther King,
como um negro “de verdade” que não foi um “nego”, mas foi sonhador,
buscador e lutador pela utopia da igualdade. Baseado em alguns
personagens a exemplo de King, monta o que parece um “negro
arquetípico”, quiçá utópico.

Um de seus poemas fala do “‘comerciante’ de Carne Negra,
nosso maior pesadelo”. Lembra um trecho de uma música de Elza
Soares: “A carne mais barata do mercado é a carne negra”. Pior ainda
é quando o açougueiro é um “nego”.

Visões do Olhar em Transe vê o sangue negro no “sangue
azul” sergipano, esquecido do porto de Estância, maior receptáculo
de negros em Sergipe, dos hauçás em Laranjeiras, que se revoltaram,
inspirados no herói negro Toussaint de Louverture, líder da maior
revolta escrava do mundo, no Haiti.

Vislumbrei no Visões, o pensamento mítico do ser humano
diante da natureza. Vários deuses, semideuses e seres mitológicos
desfilam nesse magnífico livro. Exu, Loki, Hermes, Mercúrio e Jesus
andam juntos no pensamento do autor. Encontramos sereias, negro
d’água, caboclos, passeando pelo sertão e pela beira do Opará.
Vários mitos vagueiam pelo livro. Exu é personagem constante.
Orixá temido pelos desinformados ou alienados, que acreditam ser ele
é o próprio Diabo. Essa divindade outrora exercia o patronato sobre a
fertilidade e carregava como símbolo o ogó, espécie de bastão fálico.

Aqui no Brasil teve que perder essa função, afinal, não seria mais interessante um Deus patrocinar a fertilidade negra no Brasil. Fertilidade
aqui seria aumentar o número de escravos para os cristãos. Talvez
não se saiba que os atributos de Exu são praticamente os mesmos
do Hermes grego e do Mercúrio romano. Mas para alguns, falar de
Hermes é falar de um belo Deus da Grécia Antiga, de uma civilização
desenvolvida. Desconfio que isso aconteça simplesmente por ele ser
branco e Exu ser negro.

Olhar para o negro é ver o quanto de racismo
se institucionalizou e que seguimos: tudo que é de negro é diabólico,
sua religião é demonizada. Mas cuidado, o Diabo pertence ao panteão
cristão, é algo pertinente ao cristianismo. Se o negro trazido da África,
algum momento acreditou na existência do Diabo, se alguma religião
de matriz africana, ou ameríndia sincretizou Exu com o Diabo, devese
à ação do Cristianismo, principalmente o “Catolicismo terrorista”
dos Capuchinhos no período da escravidão, ou o Jesuítico. Os cristãos
apresentaram o Diabo ao negro.

O autor vai aos poucos saudando cada Orixá. No poema Visões
91, Exu matou o pássaro ontem com a pedra que só hoje atirou,
“Quem não aceita o passado / não terá futuro”. O pássaro de ontem é
o passado, a pedra de hoje é o presente. Assim construímos o tempo
mítico e também o tempo “real”.

Lendo as visões, vou também conversando com cada orixá
no decurso dessas páginas. Vejo o barro de Nanã, o oxé de Xangô, a
espada de Ogum, os raios de Iansã...
Falando em mitologia, o autor cita a violação do Gênesis com
a escravidão de Cã, analisada na divisão tripartite do mundo.
Observamos Pandora inserida nos três poderes, com sua caixa
ainda aberta espalhando maldade pelo mundo. Mas numa forma de
esperança, os poemas revelam uma visão mística do mal que retorna
a quem o faz, na chamada lei da ação e reação. Repudiam a inveja,
a traição, a mentira.

Em Visões 78 critica o Poder Judiciário: “a justiça se diz cega
/ mas ouve o que convém / enxerga nas entrelinhas”.
A socióloga Maria Sílvia de Carvalho Franco no livro Homens livres na Ordem Escravocrata, no capítulo sobre o Código do Sertão, comenta que
os homens livres e pobres no final do século XIX não eram muito
afeitos a colaborar com o Poder Judiciário em suas atribuições. Isso
por causa das suas interpretações legais.
No sertão, as leis morais estão vinculadas ao costume. O Poder Judiciário vem para manter o monopólio da violência, o monopólio da força física. Atualmente, a visão é outra. Os ouvidos da Justiça estão superando sua cegueira.

A justiça prega a igualdade. Ou melhor, a mentira da igualdade.
O Visões 325 critica a justiça incestuosa: “Relação incestuosa da
justiça / com falta de autoridade / do juiz manipulado por sombras /
que lhes arrogam o poder”. Quantas sombras! É só observar o panorama
político, judicial, policial que ficaremos com a vista turva de
tantas sombras. As Visões do Olhar em Transe tentam iluminar essas
trevas. Tal como no “Mito da Caverna” de Platão, precisamos sair
da caverna, parar de olhar essas sombras que se projetam na parede
e encarar a realidade.

Quanto à intelectualidade, Visões adverte que muitas vezes
nossa mente se apresenta como a de colonizados, acostumados com
a colonização intelectual. Denuncia os intelectuais repetitivos que
constroem teses alienadas e amarradas em improdutivas metodologias
para provar o óbvio. Vaidosos intelectuais de aluguel, às vezes
“comprados” para legitimar injustiças, inverdades, corrupção...

“Universiotários”... Como dizia Fernando Pessoa, “Há metafísica
bastante em não pensar em nada”, com certeza, é melhor pensar em
nada, do que em teses óbvias, mentirosas ou tolas. Ao tempo que
critica esses intelectuais, elogia os intelectuais da rua, do copo de
cachaça, dos simples, dos peripatéticos das praças. Às vezes, se valoriza
mais um intelectual pela sua cor, pela sua roupa, do que pelo
seu conhecimento.
Em O Pequeno Príncipe, Saint Exupéry comenta
no início que certa vez, numa conferência, um astrônomo turco defendeu
e provou uma série de idéias astronômicas. Mesmo seus ouvintes
sabendo que ele tinha razão, ninguém lhe deu atenção porque
ele se vestia como um turco!

Esse livro é também de certa forma uma autobiografia. Em
certos momentos chega a parecer um diário, em outros, chega a parecer
psicografia. Quem bem conhece Severo sabe que muitos desses
poemas contam sua trajetória, suas vivências, seus pensamentos,
seus desejos, sua solidão, sua intelectualidade livre de prisões metodológicas tal qual ela se apresenta à mente, onde seu pensamento
num nível holístico atua em igualdade com sua alma e seus sentimentos.
Conta de seus parentes que viraram estrela na constelação
do Orum, que foram para a terra de Aruanda.
Alguns poemas seguem as etapas de sua vida, algumas que eu conheci bem enquanto trabalhamos juntos. Confirmando meu comentário, ele mesmo diz
em Visões 223: “escrevo para dialogar / cansado do monólogo”. Ele
declara que conversa com o leitor.

Lá pelo final do livro, em Visões 440, o autor aponta uma
salvação para as mazelas que tanto criticou: “A educação é que nos
vai tirar da Senzala / uma educação democrática, sem vícios”. Em
poucas palavras, uma solução difícil de se colocar em prática. Difícil
por ser democrática e sem vícios. Uma educação assim, seria a ruína
de muitos poderosos. E se nós saíssemos das senzalas! Se as Visões,
nos abrir os olhos!

Quando acabei de ler os poemas de Severo, pensei logo em
alguns leitores dizendo “Severo é doido”. Ainda hoje eu ouço essa
expressão quando falo desse preto. Logicamente é uma expressão
covarde. Quem não consegue argumentar, xinga.

Os olhares de Severo de Xangô são os olhares solitários de
um manifestante, militante negro. Seu trabalho é um grito sufocado
na escuridão do racismo que ele tanto combate. Mas que se torna
um tanto pessimista em Visões 94 “sinto que não há mérito em / em
combater o racismo / de tanto denunciar o racismo / sou cuspido
pelos negros / e acusado de encrenqueiro / fazedor de caso e criador
de problemas / e os negros torcem o nariz”.

Considero o Visões leitura obrigatória a todas as pessoas,
alunos de todos os níveis e de todas as redes de ensino. É um almanaque, um “Lunário Perpétuo” anti-racista e conscientizador. Os negros de verdade saberão entender essas visões. Os verdadeiros cidadãos
saberão respeitar seu conteúdo.

Dobalé, Severo D’Acelino.

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SEVERO D’ACELINO. Sergipano de Aracaju, (47) filho de Acelino Severo dos Santos e Odilia Eliza da Conceição – Fundador do Movimento Negro em Sergipe; Bahia e Alagoas – Ativista dos Direitos Humanos – Poeta , Dramaturgo , Diretor Teatral , Coreográfo , Pesquisador das culturas Afro indigena de Sergipe , Ator . Em 68 fundou o Grupo Regional de Folclore e Artes Cênicas Amadorista Castro Alves em 73 os Cactueiro Cênico Grupo e Teatro GRFACACA, introduzindo o Teatro Armorial e o Teatro de Rua em Sergipe. Dirigiu diversas peças e espetáculos de dança, entre eles: Maria Virgo Mater Dei, O Mistério da Rosa Amarela, A Última Lingada, De Como Revisar Um Marido Oscar, Terra Poeira in Cantus, Navio Negreiro,Água de Oxalá, A Dança dos Inkices D’Angola, Iybo Iná Iye, João Bebe Água. No Cinema interpreta Chico Rey , Espelho D’Agua e na Televisão: Thereza Baptista Cansada de Guerra. Autor de diversas peças textos e coreografias destacando a Suíte Nagô. Casado, Militar Reformado da Marinha de Guerra do Brasil. Coordenador Geral da Casa de Cultura Afro Sergipana.